"O maior desafio do ensino reside hoje em ensinar a sua própria imprescindibilidade."
Escolho esta frase e a asseveração diagnóstica nela contida como ponto de partida e como eixo reflexivo que há de vertebrar esta breve apresentação dos pensamentos que me inspira o presente contexto comemorativo da efeméride da nossa Universidade, que acaba de completar os 60 anos da sua criação.
Contudo, preciso, humildemente, admitir que nem a frase nem o seu conteúdo diagnóstico são da minha autoria. Cabe, do mesmo modo, também esclarecer que o elemento dêictico “hoje” não ancora o enunciado original ao nosso presente, mas a um tempo pretérito, anterior inclusive à data da fundação da Universidade de Brasília. Quem a proferiu originalmente foi o filósofo, poeta, escritor e reitor da Universidade de Salamanca (que comemorou em janeiro os 804 anos da sua fundação), Miguel de Unamuno, no começo do século XX, ou seja, na antessala daquele que seria um dos períodos históricos mais trágicos, sombrios e desumanos, primeiro para o seu próprio país e, em seguida, para o mundo inteiro. No contexto de um crescente dogmatismo na sociedade e de um ataque frontal ao humanismo, à racionalidade, ao conhecimento científico, às artes e à cultura, bem como às instituições e pessoas responsáveis pela sua criação, Unamuno identifica nesse esforço pedagógico adicional, de não apenas ensinar ou pesquisar, mas também de tentar fazer entender que essas atividades e o conhecimento por elas construído são imprescindíveis para a sociedade, um dos objetivos fundamentais da universidade.
Confesso que a atualidade das palavras do filósofo espanhol não deixa de me causar um certo espanto. Elas encontram, um século depois de terem sido proferidas, um referente inequívoco em todos os grandes desafios e crises da atualidade. A lista é comprida: a destruição sistemática e deliberada do meio-ambiente, a violência contra os povos indígenas, o desmonte de aspectos fundamentais da democracia e do estado de direito, a prática metódica da desinformação e da mentira, as agressões contra a ciência e a cultura e aqueles que as praticam e, de um modo geral, o empenho inconcebível pela regressão a uma sorte de sociedade irracional, anti-humanista, a um obscurantismo pré-iluminista.
Ao mesmo tempo, no entanto, na sua dimensão apelativa, as palavras de Unamuno nos mostram também um caminho. Segui-lo, com perseverança e passo firme, significa, especialmente, imbuir a todos os âmbitos da nossa atividade – o ensino, a pesquisa, a extensão, a inovação tecnológica e a própria gestão – da essencialidade de uma dimensão ética, democrática, crítica, defensora da diversidade e da pluralidade, como essências imprescindíveis que devemos transmitir à sociedade e que devemos tentar que irradiem com tanto vigor e com tanta eficácia, como o próprio conhecimento por nós produzido.
Ao longo dos 60 anos da sua história, a Universidade de Brasília deu muitos e valiosos exemplos da sua capacidade de atender essa tarefa adicional exortada pelo ilustre reitor de Salamanca. A UnB não apenas superou uma ditadura, mas contribuiu decisivamente para que a ditadura fosse superada; não apenas se redemocratizou internamente, como irradiou a sua força democratizadora em prol da redemocratização do país; não apenas se tornou mais diversa e plural, como ajudou e ajuda a que a diversidade e a pluralidade se estabeleçam como valores fundamentais na sociedade. Aqui também a lista é comprida.
O mais recente exemplo dessa imprescindibilidade ainda sequer teve tempo de virar parte da nossa história. Num esforço coletivo ímpar, alicerçado no mais puro exercício ético da empatia, da solidariedade e da conscientização coletiva, a Universidade de Brasília enfrentou e superou os desafios impostos por uma crise sanitária sem precedentes no mundo, salvaguardando a saúde dos membros da nossa comunidade, garantindo que os objetivos finalísticos constitucionais da instituição fossem plenamente atendidos e, ao mesmo tempo, colocando todo o seu potencial a disposição, a fim de mitigar o impacto da pandemia na sociedade. Mostramos, mais uma vez, que ciência, conhecimento, racionalidade e democracia são as únicas ferramentas que realmente possuímos para superar essa e outras crises que nos ameaçam como seres humanos e como sociedade.
Um elemento substancial nesse esforço coletivo foi a intensificação e ampliação das nossas práticas dialógicas em conselhos e colegiados e além deles. Agradeço diretores e diretoras, chefes, coordenadores e coordenadoras, os representantes das entidades e, especialmente os membros do Cepe, pela sensibilidade e determinação necessárias para reconhecer que precisávamos de grandes e sólidos consensos sobre os quais erguermos processos decisórios verdadeiramente representativos e adequados para cada momento da pandemia, mesmo que isso exigisse a realização de muitas e longas reuniões. Pois é, sobretudo em momentos difíceis, que devemos de lembrar que a legitimidade democrática não pode ser estabelecida apenas pela mera deliberação, mas requer, como condição sine-qua-non, um amplo processo dialógico com a participação de todos os potencialmente afetados pelas decisões a serem tomadas. A UnB deu show nesse sentido.
Como presidente do Ccar (Comitê de Coordenação das Atividades de Recuperação) não posso deixar de registrar, no momento em que comemoramos os 60 anos da nossa instituição, minha profunda admiração e o meu mais sincero agradecimento a todos os integrantes do Comitê, servidores técnicos, servidores docentes e estudantes, que durante os últimos dois anos não mediram esforços, para que vidas pudessem ser preservadas e para que a Universidade pudesse continuar atuante como sempre e necessária como nunca. Foi e é uma honra trabalhar com cada um e cada uma de vocês. Vocês têm o DNA que forjou e forja a grandeza desta Universidade.
Para o futuro imediato, que, com certeza, não vai ser fácil, e para os próximos 60 anos, faremos bem em reforçar a compreensão da imprescindibilidade do que somos, do que fazemos e de como o fazemos. Que com cada ação e com cada produto nossos ecoe com força, em todos os âmbitos da sociedade, também a voz da Universidade, dizendo:
Eu sou pública
Eu sou democrática
Eu sou ética
Eu sou crítica
Eu sou diversa
Eu sou plural
Eu sou inclusiva
Eu sou a UnB!
Enrique Huelva Unternbäumen é vice-reitor da Universidade de Brasília. Mestre em Filologia Germânica, Filologia Hispânica e História e doutor em Linguística pela Universidade de Bielefeld (Alemanha). É professor do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da UnB na graduação em Letras e no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada. Na UnB, foi coordenador dos cursos de graduação, chefe do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução, vice-diretor do Instituto de Letras, coordenador do Núcleo de Recursos e Estudos Hispânicos, coordenador do Núcleo Instituto Confúcio e diretor do Instituto de Letras.